quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Viva inteiramente inserido no seu mundo


Por Paulo Brabo

Se há algo que ensinam os mitos de todas as culturas é que a
familiaridade é inimiga do crescimento. A jornada do herói
começa quando ele se desenraiza – quando deixa o conforto do
aldeia feliz e entra na insegurança da floresta escura. É por crermos
instintivamente nisso que aqueles de nós que anseiam por tornarse
santos e heróis começamos pelo passo que nos parece ser o mais
coerente: o afastamento do mundo. Sabemos que “santo” quer
dizer “singular, separado”, e essa explicação traz em si sua própria
meta e destino: por definição, o santo não pode ter nada a ver com o
mundo.
Mas nada é tão simples, e está aí Jesus que não me deixa
mentir.
Diversas tramas acotovelam-se pela primazia na narrativa
dos evangelhos, mas há uma em particular – talvez a central – cujo
tema é tão formidavelmente revolucionário que a lição toda tende
a passar despercebida a olhos beatos como os nossos. Para abraçar
o quarto passo na direção de Jesus é preciso elucidar o mecanismo
dessa negligência histórica.
Do ponto de vista dramático, Mateus, Marcos e Lucas esforçamse
para deixar claro que o antagonista de Jesus na narrativa dos
evangelhos não é – ao contrário do que somos tentados às vezes a
pensar – Judas, o traidor. “Antagonista” é aquele que se contrapõe,
aquele que se coloca no caminho e exerce verdadeira influência,
e a traição de Judas não chega a deixar uma marca no verniz da
autonomia de Jesus. Pela mesma razão, o antagonista de Jesus não
está entre adversários que não chegam a tocá-lo (e muito menos
derrubá-lo) – figurantes como Pilatos, os fariseus, os sacerdotes ou
mesmo Satanás.
Nos evangelhos, o antagonista de Jesus é João Batista. De
todos que em algum momento da história se opõem a Jesus ele é o
único que representa verdadeira autoridade; de todos que se atiram
no caminho de Jesus querendo exercer sobre ele alguma influência, é
João Batista que, em seu recato, chega a corresponder – contrapor-se
– a ele.
Desde o momento em que o bebê salta no ventre de Isabel
diante da chegada de Maria, o relacionamento de Jesus com João é
prenhe de tensão dramática. João, por um lado, parece não chegar
a entender a peculiaridade do primo. Ele pode ter visto a pomba do
Espírito descendo sobre Jesus no Jordão, mas anos depois a conduta
do cordeiro de Deus lhe parece equívoca o bastante para que ele
mande perguntar, da prisão onde está, se Jesus era “mesmo aquele
que estávamos esperando, ou se devemos esperar por outro”.
Jesus, por outro lado, que dispensava implacáveis sarcasmo
e condenação sobre religiosos de todas as índoles, nada parecia
encontrar para condenar na vida religiosa de João. Pelo contrário; da
sua boca, quando ele fala sobre João Batista, só partem elogios: João
é o maior de todos profetas; não é um caniço que se deixa dobrar pela
tentação; homem mais notável foi jamais concebido.
Esse homem terrível que Jesus respeita é seu antagonista,
porque de todos os protagonistas do evangelho João Batista é o único
que apresenta e representa uma alternativa ao estilo de vida que Jesus
está propondo. João é o último habitante legítimo de um mundo que
Jesus veio abolir, e a inevitabilidade desse curso acaba separando-os,
a despeito do carinho evidente que têm um pelo outro.
Embora tenham angariado quase simultaneamente a reputação
de homem de Deus, os detalhes da narrativa parecem servir apenas
para salientar a intransponível distância entre as posturas de Jesus e
João. João Batista vive nas margens: é o asceta, o outsider, o homem
que se afasta deliberadamente do mundo e enxerga esse afastamento
como a porção mais essencial da sua missão. Ele é “a voz que clama
no deserto” – deserto onde não há ninguém e onde por isso ninguém
pode ouvir, a não ser quem repete o trajeto, afastando-se do mundo
para ouvir como João afastou-se para falar.
João Batista veste seu afastamento visivelmente, causando
no homem comum a mesma exasperação que deveria causar nele o
toque grosseiro do pêlo de camelo. A credencial da sua singularidade
está nos detalhes violentos dessa frugalidade: João não bebe, não
aceita convites, não freqüenta pecadores; não come frescuras como
pão e vinho (recomendando como alternativa sua dieta de gafanhotos
e mel silvestre), evita todos os excessos e jamais é visto na cidade.
Para encontrá-lo é preciso ir ao encontro dele na aridez onde nenhum
traço de humanidade pode sobreviver.
É em contraste absoluto com essa figura que os evangelistas
introduzem um novo personagem. Está aqui, propõem eles, um
herói que representa a abordagem oposta à do ascetismo de João. E
é gloriosamente que Jesus caminha pela terra desmoronando a cada
passo as seguranças desse modo de vida cauteloso, o paradigma de
santidade tradicional epitomizado em João.
Jesus é o insider, o inserido, o afiliado, o homem de dentro. Ele
não apenas recusa o afastamento do mundo proposto na postura de
João, mas assume descaradamente a direção oposta. Sem nenhum
verdadeiro precedente na história sagrada de Israel, aqui está um
homem que adquire a fama de santo e homem de Deus convivendo
com o homem comum e com gente que até mesmo o homem comum
tem dificuldade para engolir.
Em perfeita oposição a João, Jesus deixa claro que é sua
proximidade do mundo, seu “não-afastamento”, a porção mais
essencial da sua missão. Ele vence a tentação do deserto e segue
percorrendo incessantemente as cidades, onde pode estar com as
pessoas e submetê-las à sua mensagem, que é essencialmente sua
própria pessoa.
E não há virtualmente ninguém a quem ele recuse a sua
proximidade: religiosos e pecadores, fariseus, sacerdotes e prostitutas;
romanos, samaritanos, judeus e fenícios; ricos, pobres, fazendeiros,
agiotas, lavradores, coletores de impostos; militares, pescadores,
revolucionários, leprosos, cegos, aleijados, loucos, possessos, homens
e mulheres. Jesus vive entre essa gente, causando tumulto em
cada cidade e pressionado de todos os lados por suadas e mutantes
multidões. Ele se veste como todo mundo, aceita convites para festas de
casamento e freqüenta banquetes (angariando entre seus detratores a
fama de glutão e beberrão). Jesus congraça com pervertidos, bêbados,
adúlteros, tratantes e prostitutas, e seu primeiro milagre é fornecer
bebida para animar uma festa que ameaçava perder o pique.
Para encontrá-lo é preciso apenas estar fazendo o que você faz
sempre: é ele que virá inevitavelmente ao seu encontro, quer você
seja um cego esperando uma esmola na beira do caminho, um agiota
caminhando desiludido para seu posto de coleta, uma mulher andando
em direção ao poço para puxar água. Você pode não saber com quem
está falando, mas ele já está todinho ali, na sua cidade, no seu círculo,
na sua cultura. Nada na aparência dele ou na sua conduta parece
ostentar ou garantir a santidade que os religiosos anunciam como
uma trombeta. Se esse é sujeito é um profeta e um santo, trata-se do
primeiro da espécie que não lhe parece ser essencialmente diferente
de você. Ele irá invariavelmente aceitar o seu convite para sair, para
jantar, para ir à sua casa, para conhecer uns amigos, para visitar um
doente, para beber uma jarra de vinho.
Esse homem, definido por esse estilo de vida, é que os cristãos
adotaram oficialmente como professor, profeta, messias, salvador e
Filho de Deus. Extra-oficialmente, adotamos o estilo de vida de João
Batista.
João é o homem que se afasta do mundo para não deixarse
contaminar por ele. Jesus é o homem inteiramente inserido no
mundo, inteiramente mergulhado nas complicações do dia-a-dia e
nas preocupações e privilégios do homem comum.
Dos incontáveis paradoxos do cristianismo histórico, esse é
mais um: historicamente, os cristãos ignoraram o exemplo de Cristo
e tornaram-se seguidores funcionais de João. O caminho de João
Batista é o caminho dos monges do deserto, das ordens religiosas, das
rádios evangélicas; é o caminho do ascetismo, das regras estabelecidas
para “fazermos diferença”; das abstenções, do recuo, do afastamento,
da irrelevância, da exclusão e do preconceito.
O caminho de Jesus é o da inclusão, da presença, do abraço
irrefletido e incondicional do mundo. É o caminho estreito que poucos
trilham, a porta exigente pela qual poucos passam.
Sempre que cedemos à tentação de trocar a confusão
transpirante do mundo pelo conforto harmonioso e acolhedor de
uma comunidade cristã; sempre que aceitamos o abraço exclusivo de
uma subcultura de qualquer estirpe em detrimento da cultura no seu
sentido mais amplo; sempre que dividimos nossa experiência entre
uma esfera religiosa e uma profana que não chegam a se tocar; sempre
que nos recusamos a consentir qualquer associação com música
“do mundo”, filmes “do mundo” e pessoas “do mundo”; sempre
que negamos nossa presença, nossa companhia e nossa lealdade a
gente que em seu estado atual não julgamos merecê-las; sempre que
reservamos nossas noites, nossos feriados e nossos fins-de-semana
para o convívio com gente cuja santidade os torna inerentemente
distinta da massa dos mortais – estamos (como diz a música “do
mundo”) escolhendo errado nosso super-herói.
Era o caminho inclusivo de Jesus que deveríamos estar
seguindo – e num mundo ideal eu não deveria ter de estar explicando
isso, especialmente a mim mesmo.
Para seguir os passos de Jesus é preciso viver inteiramente
inserido no nosso mundo. Qualquer avanço bem-intencionado na
direção de um afastamento, como bem intuiu Simone Weil, implica na
condenação tácita, divisiva e finalmente devastadora dos “de fora”.
Para seguir os passos de Jesus é preciso abrir mão do ascetismo de
João Batista e correr o risco de ser tachado de bêbado, o doce risco
de ser visto no boteco da esquina com maloqueiros e mulheres de má
fama.
Jesus propõe, inconcebivelmente, uma espécie de santidade
que não é definida pela exclusão, mas pela generosidade e pela
liberalidade da presença. É dele a horrenda idéia original de distribuir
abraços gratuitos – gratuitos no sentido de serem dados a quem,
essencialmente, não os merece. Essa sua ousadia derruba para sempre
a primazia da surrada santidade distanciada epitomizada em João
Batista. Jesus demonstra, em seu modo de vida, que um caminho
superior ao de achar-se melhor do que os outros pela exclusão é amar
os outros pela inclusão.
Curiosamente, João Batista e Jesus começaram pregando uma
mesma mensagem, “o Reino de Deus está próximo” – o Reino de Deus
veio para perto de vocês, – mas é apenas com a escandalosa conduta
inclusiva de Jesus que essa insólita proposição ganha verdadeiro peso.

Quando é informado a respeito da morte de João Batista (decapitado
pela espada de Herodes), Jesus não chora apenas a perda de um
amigo, mas a morte de uma alternativa ideológica que Deus jamais
voltaria a aprovar. A devoção como afastamento do mundo havia sido
substituída pela santidade como presença no mundo. É por isso que
segundo Jesus, embora homem mais notável que João este mundo
não tenha concebido, o menor na nova ordem do reino de Deus “é
maior do que João”.
Uma das mais terríveis revelações que Jesus fez aos seus
discípulos é que eles deveriam viver neste mundo como ele viveu.
“Da mesma forma que meu Pai me enviou eu envio vocês”, ele disse, e
estamos apenas começando a entender as implicações dessa sentença.
Uma coisa no entanto parece certa: para o seguidor de Jesus, a
verdadeira jornada começa quando ele abandona o conforto da aldeia
religiosa e põe o pé na floresta escura, conturbada e indiferenciada
do mundo. A santidade do senso comum exige que nos afastemos da
normalidade da experiência do dia-a-dia em favor da singularidade
da vida religiosa. O Filho do Homem nos convida, assombrosamente,
a fazermos o trajeto oposto.

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