domingo, 18 de novembro de 2007

Surfe-História




Para todos nos surfistas, que amamos nosso esporte, é quase que uma obrigação entender suas raízes e seu profundo eco em nossas mentes. Ninguém sabe ao certo onde o surfe se originou se entendermos o surfe na sua mais pura concepção, ou seja, o ato de deslizar sobre uma onda. Algumas teorias nos levam a África ocidental, outras ainda nos remetem para os anos 200 a 600 d.C. à costa norte do Peru, onde nativos deslizaram sobre as ondas utilizando embarcações feitas de fibra de junco medindo aproximadamente 3 metros de comprimento, conhecidas como Cabalos de Totora.

Tudo nos leva a crer que o surfe como cultura nasceu no Havaí. Entretanto, para que possamos compreender o seu real significado, temos que seguir desvendando as características do povo polinésio, pois para sabermos onde um povo se situa em um contexto cultural, é fundamental saber de onde ele emergiu. E esse é um dos maiores enigmas antropológicos de nossos tempos. Como esse povo alcançou as ilhas mais remotas do planeta?

Polinésia literalmente significa muitas ilhas. Distribuídas em uma área de mais de 10 milhões de milhas quadradas, e que formam um triangulo conhecido como triangulo polinésio. O termo foi criado pelo magistrado francês Charles de Brosses em 1756, combinando duas palavras de origem grega. A região é delimitada pelo arquipélago havaiano ao norte, as Ilhas Rapa Nui (Ilhas de Páscoa) situadas a sudeste e Aotearoa (Nova Zelândia), situada na região sudoeste do pacifico.

Atualmente a polinésia é considerada uma nação, graças às descobertas de um dos maiores navegadores e exploradores de todos os tempos, o capitão inglês James Cook. Entre 1768 a 1779, Cook desbravou a polinésia de norte a sul e de leste a oeste.

Comandando suas naus Endeavour e Resolution, este inglês foi o primeiro navegador da fase européia de expansão global a documentar as similaridades lingüísticas, religiosas e tecnológicas entre os diferentes ilhéus desta vasta região do globo. Cook, ao que tudo indica, foi um explorador que se diferenciou dos demais exploradores europeus que o antecederam, pois, admirava e respeitava a cultura desses “novos” povos, a ponto de chegar a aprender rudimentos do dialeto polinésio com um nativo taitiano de nome Tupaia, com quem travou uma amizade durante sua estadia nesta região.

Foi Tupaia que começou esclarecer o mistério para James Cook. Segundo ele, os polinésios orientavam-se em suas longas jornadas marítimas utilizando-se do sol, da lua e das estrelas, alem da direção das ondulações, e da migração dos pássaros marinhos como referencia de rota.
Mas foi muito antes de o capitão James Cook adentrar na baia de Kealakekua, os havaianos já dominavam esta nobre arte. Deslizar sobre ondas usando uma pequenina prancha de madeira já era parte da rotina da grande maioria dos ilhéus da polinésia.

Os havaianos tomaram este habito, desenvolvendo pranchas enormes, refinaram-se na arte de shape (manufatura das pranchas), criaram novas técnicas e elevaram o surfe ao mais alto patamar dentro de sua cultura.
Duas linhagens de pranchas foram identificadas na polinésia: os bodyboards, mais conhecidos como paipos e as pranchas maiores que possibilitavam o surfe de pé.

Alguns anos mais tarde, e duas mil milhas abaixo do Havaí, James Morrison relatou a pratica do surfe por nativos do Taiti, e ainda existem vários relatos semelhantes na remota Rapa Nui e também em Aotearoa.

Inúmeras lendas descrevem longas viagens de canoa entre o Taiti e o Havaí. Uma delas conta a historia de um rei, que tendo navegado do Taiti ao Havaí, fixou residência permanente em um famoso local de surfe no Kauai.

Em 1823, o missionário C.S. Stewart observou que em Maui, a prancha de surfe era um importante artigo de propriedade privada entre todos os grandes chefes daquela ilha. Os nativos passavam literalmente horas praticando surfe. Outro missionário de nome Ellis relata: “Quando as ondas chegavam, os vilarejos ficavam completamente vazios. Tarefas do cotidiano tais como pesca atividades de plantio e de construção, eram totalmente esquecidas e deixadas de lado, enquanto toda a comunidade, homens, mulheres e crianças passavam o dia a divertir-se nas ondas que quebravam sobre os corais.”.

Analisando os antigos textos havaianos, fica patente e muito clara a imensa liberdade sexual que este povo vivenciou. E como não poderia deixar de ser, o surfe também teve uma participação muito significativa nesse contexto.
O fato de os ilhéus surfarem praticamente nus demonstrava a falta de constrangimento destes, e a forma simples e descompromissada com a qual encaravam sua sexualidade.

A sociedade polinésia possuía uma serie de tabus conhecidos como kapu. Uma outra característica marcante da sociedade havaiana era a competição de surfe.

O surfe era também o ponto central do maior festival havaiano existente. Era uma celebração anual chamada Makahiki. O Deus Lono era o patrono deste festival, e todas as celebrações eram realizadas em sua homenagem.

Entre os inúmeros deuses havaianos, entretanto, não existe nenhuma menção especial a um deus do surfe. Já no Taiti, Ellis nos fala de um Deus conhecido como Huaouri e relacionado diretamente com as práticas do surfe.

Os havaianos tinham tantas palavras para designar ondas como o esquimó as tem para designar neve. Abaixo, algumas julgadas pertinentes:

Ale lauloa = onda longa e grande.
He’ e nalu = fazer surfe, surfista.
He’ ó’ la ka meã háwáwá I ka he’e nalu = o surfista inexperiente cai.
Kaha nalu, he’e umauma = Bodysurf.
Kai emi, nalu miki = onda causada pela arrebentação.
Kai po’i, nalu há’i = onda que arrebenta.
Malu há’i lala = onda que arrebenta na diagonal.
Nalu = arrebentação, oceano, onda.
Nalu kua loloa = onda longa.
Nalunalu = onda imperfeita.
Pae = surfar uma onda.
Pae i ka nalu = surfar uma onda até a praia.
Paka = surfar com canoa.
Papa he nalu = prancha de surfe.
Wahine = mulher surfista.


Morte e renascimento do surfe

Do ápice de seu desenvolvimento, toda a cultura rapidamente começou a entrar em declínio, e o surfe, por volta de 1900, quase que desapareceu por completo nas ilhas. Já em 1844, em um volume intitulado scenes and Scenery in the Sandwich Islands, Jarves observou que a prática do surfe nas ilhas já não passava de um mero acontecimento ocasional.

O declínio do surfe foi uma mera parte de um desastre muito maior ocorrido nas ilhas do Havaí, e porque não dizer, em quase toda polinésia.

Da chegada dos primeiros europeus em 1778, ate a anexação das ilhas aos EUA em 1898, virtualmente todos os esportes, passatempos e cultura dos havaianos desapareceram. Os ilhéus gradativamente perderam sua independência social, política, econômica e consequentemente, sua identidade.

Em 1890 a população nativa do Havaí era de somente 40 mil indivíduos. Algumas estimativas sugerem que em épocas pré-europeias a população tenha atingido a cifra de 400 a 800 mil nativos.

Para completar esse cenário uma nova religião foi implantada no arquipélago, com novas restrições e novos sistemas de sobrevivência a Deus. Os missionários europeus tentaram por todos os meios influenciar os ilhéus e converte-los ao ramo Calvinista do Cristianismo, que julgava imoral suas vestimentas, sua abusiva liberdade sexual e seus passatempos que impediam o desenvolvimento cientifico e tecnológico. Alguns europeus chegaram a ponto de associar a pratica do surfe ao satanismo.


Morte e Renascimento do surfe no século XX

Alexandre Hume Ford, George Freeth, Jack London e o príncipe Duke Paoa Kahanamoku foram alguns dos protagonistas centrais deste renascimento.
Vitimados pela dizimação de seu passado e sedentos por reconquistar ao menos parte de sua gloria de outrora, esse povo iniciou em meados da década de 60 um projeto de redescobrimento de suas origens. Essa reação cultural se deu em um momento crucial, quando diversos segmentos de sua cultura estavam prestes a dar seus ultimo suspiro e perder-se no âmago do tempo.

Em 1976 o Hokule’a parte do arquipélago havaiano rumo ao Taiti, levando como tripulação somente polinésios. A travessia é feita com sucesso e repetida em 1978, onde um acidente tirou a vida de um de seus tripulantes, o grande surfista e salva vidas do North Shore (costa norte da ilha de Oahu) o havaiano Eddie Aikau. Que por um ato de heroísmo saiu remando com sua prancha atrás de socorro e nunca mais foi visto tempo depois toda tripulação do barco foi resgatada.


Waikiki, berço do Renascimento.

Durante o século dezenove, alguns haoles (estrangeiros) aprenderam a surfar, muito embora o grande escritor americano Mark Twain, durante sua visita ao Havaí em 1860, tenha afirmado: “Ninguém, a não serem os nativos havaianos, é capaz de dominar a arte do surfe completamente”.

Entre esses intrépidos haoles estava George Freeth, um jovem irlandês de vinte e três anos de idade que fixou residência permanente nas ilhas e se tornou um dos melhores surfistas de todo o arquipélago. Freeth era professor de surfe nas ilhas e um dos responsáveis pela divulgação desse esporte para alem das fronteiras havaianas. Em 1907, George Freeth foi convidado por Henry Huntington para fazer uma demonstração de surfe em Redondo beach, na Califórnia. Essa demonstração fazia parte de um plano de marketing destinado a promover a estrada de ferro Los Angeles- Redondo Beach. Na época os jornais publicaram a seguinte Manchete: “George Freeth, o homem que pode andar sobre a água!”.

Mas, muitos anos antes de Freeth divulgar o surf em águas californianas, três verdadeiros príncipes havaianos deram inúmeras demonstrações daquilo que era o surf primitivo. Isso aconteceu em 1885, quando Jonah Kuhio Kalaniana’ole, David Kawananakoa e Edward Keli’iahonui estudavam na St. Matthew’s Military School, em San Mateo, Califórnia.

Também muito proeminente nesse novo movimento foi Alexandre Hume Ford. Ford, na época um haole completamente envolvido e apaixonado por esse esporte, dava aula de surfe para jovens em Waikiki, e em 1907 teve a oportunidade de ministrar aulas para Jack London.

Jack London escreveu um artigo repleto de sentimentos passionais sobre o surfe. Esse texto foi publicado primeiramente na National American Magazine, e posteriormente em seu livro The Cruise of The Snark, e recebeu o titulo de “A Royal Sport” (“um esporte real”). Ate hoje, se lido por um leitor que consiga situar-se no tempo e no espaço, essa narrativa pode ser considerada a mais bela já feita sobre nosso esporte.

Outro passo crucial no ressurgimento do surf foi à fundação do The Hawaiian Outrigger Surf and Canoe Club. Esse clube iniciou suas atividades em 1908, depois que Freeth e Ford arrendaram um acre (4.000 m2) de praia em Waikiki.

Em 1911, outro clube de extrema relevância na historia do surfe foi fundado no Havaí: The Hui Nalu (Surf Clube). Embora existisse informalmente desde 1905, foi somente em 1911 que obteve sua legitimação, quando passou a ser oficialmente um clube de surfe apenas para havaianos. A criação do Hui Nalu foi importante para o surfe, pois criou um clima de competividade amistosa entre os dois clubes, incentivando o crescimento de ambos.

Um dos mais famosos do Hui Nalu foi também o surfista mais influente do século passado: Duke Paoa Kahinu Mokoe Hulikohoa Kahanamoku, ou simplesmente Duke.

Esse havaiano de sangue real nasceu em 24 de agosto de 1880, em Haleakala, na ilha da Maui. Seu pai foi Duke Halapu Kahanamoku e sua mãe chamava-se Julia Paoakania Lonokahini.

Duke era um dos pouquíssimos habitantes das ilhas que ainda carregava em seu sangue o DNA de uma linhagem havaiana, e começou a se interessar por surfe no ano de 1898, quando a maioria já acreditava que esse esporte era uma arte perdida.

A vida de Duke, assim como para seus irmãos e amigos havaianos, era bem difícil em termos financeiros, logo, essa “turminha” ganhava a vida dando aulas de surfe e natação no Moana Hotel. Praia o dia todo, diversão garantida, romances furtivos e pouca grana: ganhava-se mal, brincava-se bastante, tocava-se a vida no balanço do mar...

A carreira de Duke foi muito longe. Chamando a atenção de um extraordinário treinador de natação chamado Syd Cavil, e em 1911 Duke rumou para a Califórnia, mais precisamente para o Clube Olímpico de San Francisco. Lá, sob a égide de Cavil, Duke treinou junto com a equipe americana de natação visando os Jogos Olímpicos de Estolcomo, na Suécia, em 1912. Chegando lá, Kahanamoku impactou a todos. Não somente venceu os 100 metros livres com larga vantagem, como também igualou o recorde mundial de 1’02”4 do alemão Kurt Bretting em uma das eliminatórias! Alem disso, ficaram com a prata nos 4 x 200 metros livres. O mito estava criado! Um príncipe havaiano, exótico, simpático e enigmático era o nadador mais rápido do planeta! O olho do mundo voltava-se para ele e, consequentemente, para o esplendor de sua terra e de sua cultura. Enfim, o surfe poderia ter uma chance....

Mas talvez o fato mais marcante da carreira de Duke como embaixador da cultura havaiana e, consequentemente do surfe, tenha sido a sua visita à Austrália, em 1914. Duke foi convidado pela Associação de Natação de Novas Gales do Sul a participar de um evento esportivo chamado 33-Race Swimming Tour.

Kahanamoku chegou a Sidney no dia 14 de dezembro, e imediatamente solicitou aos organizadores do evento a possibilidade de realizar demonstrações de seu esporte favorito, o surfe. A data da exibição foi logo marcada para o dia 23 de dezembro, e o local escolhido foi à praia de freshwater, ao norte de Sydney.

Os dias que antecederam a demonstração foram de muita expectativa, pois a imprensa se empenhou em divulgar tal fato. O jornal The Sydney Referee foi um dos principais envolvidos no feito de Duke, e suas manchetes referiam-se ao príncipe como sendo maravilhosamente hábil em uma arte ainda não dominada pelos australianos.


Outros resultados da carreira de Duke como nadador olímpico.

Jogos Olímpicos de Estolcomo – Suécia, 10/07/1912.
Prova – 100 metros livres, homens. Paises participantes – 12. Atletas inscritos – 34.

Resultado final:
Nome País de origem Tempo
1 - Duke Kahanamoku USA 1’03” 4
2 – Cecil Healy AUS 1’04” 6
3 – Kenneth Huszagh USA 1’05 “6
4 – Kurt Bretting GER 1’05” 8
5 – Walter Ramme GER 1’06” 4

Jogos Olímpicos de Antuérpia – Bélgica, 29/08/1920.
Prova - 100 metros livres, homens. Paises participantes - 15. Atletas inscritos- 33.

Resultado final:
Nome Pais de origem Tempo
1 - Duke Kahanamoku USA 1’01”4
2 - Pua Kela Kealoha USA 1”02”6
3 - Willian Herris USA 1’03”0
4 - William Herald AUS 1’03”8
5 - George Vernot CAN

Jogos Olímpicos de Paris – França, 20/07/1924.
Prova – 100 metros livres, homens. Paises Participantes - 15. Atletas Inscritos – 30.

Resultado final:
Nome Pais de origem Tempo
1 - Johnny Weissmuller USA 59”0
2 - Duke Kahanamoku USA 1’01”4
3 -Samuel Kahanamoku USA 1’01”8
4 - Arne Borg SWE 1’02”0


Essa busca de prazer nos ofusca o esforço despendido. Na época de Duke, em que a técnica de nado ainda não estava tão evoluída, isso foi um grande diferencial em seu sucesso. Um grande nadador que nunca tinha nadado, mas que tinha dado ao seu corpo a chance de tornar-se saudável na medida em que se divertia com seus amigos em seu playground oceânico. Porém, o governo havaiano, percebendo que a imagem de Duke estava fortemente atrelada à imagem do próprio arquipélago havaiano e toda a sua magia, concedeu ao príncipe a possibilidade de trabalhar como anfitrião da cidade de Honolulu, atividade que Duke cumpriu com esmero até o final de sua vida.

Um príncipe, uma terra distante, uma prancha feita de madeira, os sonhos de uma criança... Nada muito requintado, nenhuma produção milionária... Apenas um roteiro bem escrito pelos deuses do surfe. Um roteiro pautado na simplicidade e na generosidade.


Um sorriso para a vida

Ford, Freeth, London e uma infinidade de outros meninos foram extremamente importantes para o renascimento do nosso esporte. Porem, não teve a sorte de Duke, pois nosso príncipe esteve presente na hora certa, no local certo, e teve também a atitude mais apropriada para aquele momento mágico.

Duke teve sorte e esperteza ao se utilizar da natação e da glória olímpica para disseminar pelo mundo afora seu esporte preferido, juntamente com os resíduos de sua rica cultura. Alavancou o filho de He’e nalu para a glória futura e presenteou-nos com sua angelical graça.

Hoje, vivemos um momento totalmente distinto: Em vez de pranchas de madeira, temos espuma e fibra de vidro; em vez de porcos e canoas de guerra como prêmio, alguns milhares de dólares, em vez de reis, mitos gerados pelos meios de comunicação. Porém, quanto mais algo muda, mais continua imutável, ao menos na sua essência...


E a essência do surf sempre foi e sempre será o sorriso!

Duke partiu em 1968, com setenta e sete anos de idade. Um ataque cardíaco o vitimou no Iate Clube de Waikiki.

O homem que foi responsável pelo renascimento das grandes pranchas de surfe abandonava a velha terra de He’e nalu no momento em que o mundo presenciava novamente a morte dos velhos longboards e o nascimento das minimodels, na mais devastadora revolução de nosso esporte desde o inicio do século XX.


Por Alfredo Hanada

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